terça-feira, setembro 16, 2003

Frgamentos de cartas, poemas, mentiras, retratos...

(Chico Buarque)





Eu sei, mas não devia.

(Marina Colassanti)



A gente se acostuma em morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque a medida que se acostuma esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.



A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo de viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número de mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz, aceita ler todo dia de guerra, dos números de longa duração.



A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso devolta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada VEZ pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.



A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se acostuma à poluição, à luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural, às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta à lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutos do pé, a não ter sequer uma planta.



A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tanto sem não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua o resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sono atrasado.



A gente se acostuma, para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma.

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